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segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Matrix

SINOPSE


Matrix foi lançado em 1999 e se tornou um dos maiores campeões de bilheteria da indústria cinematográfica. O filme é uma mistura de ficção científica, ação, com referências ao budismo, hinduísmo, cristianismo e filosofia, principalmente a platônica. O filme inovou em efeitos especiais e influenciou diversas produções cinematográficas. Seu valor filosófico é incontestável, mas ignorado pela maioria de seus espectadores, que o veem apenas como um filme de ação e artes marciais.
O filme tem como tema principal, a luta de alguns homens para se libertarem do domínio das máquinas e trazer novamente a realidade humana. Neo (Keanu Reeves) é o salvador da humanidade, o mensageiro da verdade que liberta.
Matrix é um filme que nos leva á raciocinar sobre duas áreas da filosofia; a ontologia e a epistemologia, além de fazer referências ao sistema político, econômico e á várias crenças religiosas, como o Hinduísmo, o Cristianismo e principalmente, ao Budismo.
Se eu fosse fazer uma análise mais detalhada do filme, correria o risco do texto ficar muito extenso e até prolixo. Sendo assim, procurei destacar mais as questões epistemológicas, ontológicas, além da antropologia socrática.
Assistir Matrix apenas como um filme de ação e ficção científica, é difícil para quem estuda ou se interessa por Filosofia.


COMENTÁRIO

Para Platão, o mundo em que vivemos é uma cópia imperfeita da realidade e nossa ignorância nos impede de vermos as coisas como elas realmente são. O que temos como real não passa de sombras do Mundo das Ideias, que é o local onde está a verdade suprema.
No livro VII de “A República”, Platão relata um diálogo entre Sócrates e Glauco. Sócrates sugere que seu interlocutor imagine alguns homens que sempre viveram dentro de uma caverna, com as pernas e pescoços acorrentados. A única coisa que esses homens veem são as sombras projetadas na parede da caverna, causadas por uma pequena fogueira atrás deles. Essas sombras são de objetos e de pessoas que transitam próximo á caverna. Os sons que os prisioneiros da caverna ouvem são ecos das vozes daqueles que estão do lado de fora. Para eles, essas sombras e esses ecos são o que há de real.
No entanto, um desses acorrentados é liberto e percebe que há uma realidade além daquela que lhe foi apresentada por toda a vida. A princípio, ele considera que a nova verdade não passa de uma ilusão, e ao ter contato com a luz do sol, sente os olhos arderem e aos poucos vai se habituando á verdade fora da caverna.
Ao retornar á sua antiga moradia, a caverna, ele não suportaria mais as trevas e ao relatar o que viu para seus antigos companheiros de prisão e trevas, seria considerado louco e provavelmente eles o matariam, caso tentasse libertar alguém.
No filme dos irmãos Wachowski, a Matrix é um mundo virtual, e assim como na caverna, todos os que vivem nela são prisioneiros da ignorância, desconhecendo a realidade suprema. Tudo que se vê na Matrix, não passa de ilusões de seres humanos adormecidos e prisioneiros das máquinas que passaram a dominar o mundo real. O protagonista Thomas A. Anderson, também conhecido como Neo (interpretado por Keanu Reeves) sempre desconfiou que há algo de errado com o mundo. Assim, como o prisioneiro da caverna, Neo (um anagrama para “One”, O Único, O Escolhido) é liberto do mundo das sombras e tem contato com a realidade.
Mas, afinal, o que é real ? É esta, a pergunta feita por Morpheus (Laurence Fishburne) a Neo. Em seguida, ele diz ao “escolhido”: “se você está falando sobre o que você pode sentir, o que você pode cheirar, o que você pode saborear e ver, o real são simplesmente os sinais elétricos interpretados pelo seu cérebro”.
Esse diálogo de Morpheus com Neo sobre o que é real, nos leva á clássica questão epistemológico: a fonte (e fundamento) do conhecimento humano é a razão ou a experiência? Quem determina o conhecimento: o sujeito ou o objeto?
Se o real for apenas o que nosso cérebro interpreta como tal, chegaremos á conclusão de que a realidade é subjetiva, tanto na Matrix como fora dela. Tanto nas trevas da caverna quanto na luminosidade do lado de fora. Ou seja, a realidade não passa de uma interpretação individual, como defendia o sofista Protágoras, que rejeitava a ideia de uma verdade absoluta.
Caso a realidade seja objetiva, partindo da experiência, paradoxalmente ela seria relativa, pois iríamos considerar como real aquilo que nos foi apresentado como verdade durante nossa vida, até conhecermos e aceitarmos outra experiência como real.
Repetindo a pergunta de Morpheus: “o que é real;  que eu vejo ou como eu vejo. o que eu conheço ou como eu conheço?
Para os que vivem na Matrix, ela é a realidade, porém para os que vivem em Zion (o único lugar que não foi dominado pelas máquinas e ainda é povoado por humanos cientes), são eles os detentores da verdade absoluta.
Na Matrix, poucos estão preocupados em conhecer a verdade absoluta. Na verdade, a maioria ignora e, nem sequer, se preocupa se há outra realidade,além daquela que experimentaram desde que nasceram e que lhes foi ensinada pela família, pela igreja, pela escola e pela sociedade em geral. E, por que motivo, se preocupariam com isso?Estão preocupados em “vencer” na vida; estudam, trabalham, transam, criam seus filhos, e a maioria ainda acredita que após a morte, viverá em paz, eternamente num lugar lindo e iluminado. Por que, então, questionariam essa “realidade”?
A verdade, realmente, liberta, como está escrito nos evangelhos? Para Cypher (Joe Pantoliano), um dos parceiros de Morpheus, viver no mundo virtual de Matrix é muito mais gratificante e libertador que viver na realidade sombria e sem graça de Zion.
Cypher, é uma espécie de Judas, que trai seus companheiros para, em troca, se beneficiar dos prazeres da Matrix. Afinal, por que viver num mundo onde nem sequer pode se experimentar os prazeres do paladar, se o mundo virtual lhe oferece muito mais que isso?
Muitas vezes, o filme nos causa a impressão de quem vive aprisionado numa caverna são os habitantes de Zion e não as mentes iludidas na Matrix.
A Filosofia Ocidental (para muitos a única que existe, pois não consideram o pensamento Oriental como Filosofia) surgiu como uma alternativa á mitologia. Enquanto o pensamento mitológico dava respostas ás questões da humanidade de forma épica e sobrenatural, através das poesias de Homero e de Hesíodo, os primeiros filósofos ocidentais usavam o raciocínio lógico e procuravam as respostas aqui mesmo. Questões como “o que é real” e “de onde surgiu tudo” foram aos poucos abandonando as fontes mitológicas como respostas.
Enquanto os jônicos, diziam que o real e a origem de tudo está physis (natureza), os eleatas acreditavam que a única verdade é o ontos (ser) e ele é a origem e a única verdade absoluta. Porém, Sócrates disse que a realidade está dentro de cada um. O Daimon é a ligação entre a verdade subjetiva e a objetiva. Ou seja, Sócrates acreditava no Ser, porém defendia que cada pessoa possuía uma verdade subjetiva, e que apenas através de uma auto investigação, o Daimon (espírito, consciência) levaria alguém a encontrar a verdade absoluta.
E é esta autoanálise, através de seus questionamentos, que leva Neo á descobrir a verdade. A Matrix era o devir, o vir a ser de Heráclito, enquanto Zion era o Ser de Parmênides, comparando com a fisiologia e a ontologia dos pré-socráticos.
Neo precisava aceitar sua ignorância, conhecer a si mesmo e refletir sobre a vida que vivia para se libertar das amarras do mundo ilusório. Agora, comparo o filme á filosofia humanista de Sócrates, que induz o ser humano a buscar a verdade através de um questionamento sobre si e sobre o que o cerca.
Como o próprio Sócrates dizia: “uma vida sem ser questionada, não vale á pena ser vivida”. Afinal, sem questionar, viveremos como fantoches da mídia, da religião, da política, da economia, da sociedade e dos próprios questionadores.
Neo representa o antissistema, a revolução, a mudança, aquele que liberta o homem da ignorância e da ilusão. Se equipara a Buda e Sócrates, na busca da libertação do homem em si mesmo. Assemelha-se a Krishna dos indianos e a Jesus dos cristãos, como o salvador da humanidade

Comentário e sinopse por Marcelo Maia Gomes, licenciado em Filosofia pelo CEUCLAR BH.

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Escritores da Liberdade

SINOPSE
por Marcelo Maia Gomes

O filme “Os Escritores da Liberdade” é a versão cinematográfica do livro The Freedom Writers Diaries, baseado nas experiências reais da professora Erin Gruwell e de seus diversos alunos.
No filme, a jovem professora Erin Gruwell( interpretada por Hilary Swank) vai trabalhar em uma escola, lecionando numa turma de alunos rebeldes e problemáticos. Mesmo sem contar com o apoio da direção da escola, que não se importa muito com aqueles adolescentes, Erin acredita em seus alunos e se dispõe a investir neles.
No início, ela tem problemas na relação com a classe, composta em sua maioria por filhos de imigrantes, negros e pobres. Eles veem na professora, uma representante da dominação branca sobre eles. No entanto, com bastante perseverança, ela vai conquistando a confiança dos garotos.
Para superar as diferenças étnicas e as mazelas sociais, Erin indica a leitura do best seller “O Diário de Anne Frank” e sugere que cada aluno escreva em um caderno personalizado suas experiências de vida.
Um ótimo filme que nos leva a refletir sobre a relação “professor/aluno” e a valorização do espírito no processo educacional.


COMENTÁRIO 
por Marcelo Maia Gomes

Para o filósofo Sócrates, as ações do homem deveriam se fundamentar na busca de valores e esse era o principal objetivo de sua filosofia; transformar seus concidadãos em pessoas melhores. E assim deve ser o papel de um educador; criar nas pessoas uma consciência de valores, através de exemplos e conceitos.
Um educador não deve ser, apenas, um seguidor de roteiros de planos de ensino e repetidor do que está nos livros didáticos. É necessário que o professor leve o aluno a questionar o que está ao seu redor e a si próprio. O aluno deve ser incentivado à dúvida, à pesquisa e ao debate para formar seu próprio raciocínio e ser capaz de argumentar e defender aquilo que acredita.
A professora Erin Gruwell ao se deparar com uma situação de preconceito racial em uma classe de alunos problemáticos, não tentou impor aos seus alunos o que é certo e o que é errado. Ela os levou a questionar a situação, citando como exemplo, o Holocausto. Esse foi o ponto de partida para a jovem educadora, que deixou de ser, apenas, uma copiadora de livros didáticos no quadro e passou a ser uma pessoa interessada em transformar aqueles jovens em caçadores de valores.
Ela não deixou que o descaso das autoridades e o descrédito da direção da escola em que lecionava a desanimasse de ir atrás de seu objetivo, que era tornar seus alunos pessoas de bem. Além desses obstáculos, ela enfrentou a desaprovação do seu pai em relação a sua escolha profissional e a incompreensão do marido, que a abandonou alegando que estava sendo deixado de lado pela esposa. Erin acreditou que uma boa educação poderia criar uma nova consciência nos jovens e lutou por isso.
Ela usou de forma diferente, o método socrático de se educar, divido em dois períodos; ironia e maiêutica. Através da leitura, em especial do livro “O Diário de Anne Frank” e de conversas com a professora, os alunos se questionavam(ironia) sobre questões raciais e sociais, o que lhes permitiam dar lugar a novas ideias(maiêutica).
Nietzsche criticou a educação vigente na Alemanha dos últimos anos do sec. XIX, que era preparada não com o intuito de elevação da cultura mas, para o mercado. Outra crítica que o filósofo alemão fez à educação de seu tempo era a tendência à especialização em determinada área, deixando de lado a preparação de um espírito crítico, criador e emancipatório
Nos dias atuais, em nosso país, a educação está muito pior daquela criticada por Nietzsche, já que grande parte dos jovens terminam o ensino médio sem, ao menos, entenderem o que e  porque aprenderam o que lhes foi ensinado em doze anos. Disciplinas como a Filosofia, Sociologia e Artes não são valorizadas nas escolas, principalmente no Ensino Público. Com isso, o educando cria a consciência de que escrever mesmo cheio de erros, e fazer cálculos lhe basta para ser um homem preparado para a vida. Não questionam, não pesquisam e nem debatem qualquer assunto. Tornam-se adultos cheios de certezas fundamentadas numa visão superficial, criada em igrejas,revistas "Veja" e emissoras de televisão, e tal visão é divulgada em bares, dentro de ônibus e em reuniões familiares,onde na maioria das vezes estão pessoas com a mesma formação ou até inferior a de seus "profetas". Daí, cria-se o círculo da imbecilidade.
Erin percebeu que os alunos de sua classe precisavam muito mais do que serem preparados para o mercado e ,muito menos, para serem divulgadores de certezas não fundamentadas. Precisavam aprender a viver no meio dos diferentes, a entender o preconceito e a combatê-lo. Para conseguir o resultado que queria, a jovem professora sabia que precisava ser bem mais que idealista; era necessário estar disposta a enfrentar a si mesma para isso.
Embora o filme “Os Escritores da Liberdade” conte uma história baseada em fatos reais ocorridos nos Estados Unidos, há muita semelhança com a situação educacional no Brasil. Não é difícil, encontrar  escolas em nosso país, na qual professores e diretores já desistiram dos alunos e só estão ali para cumprirem um contrato e receberem seus míseros salários no início do mês seguinte. Há um descaso das autoridades com os profissionais do ensino e com a educação em si.
Assim como no filme, os professores brasileiros se deparam com vários alunos vindo de famílias desestruturadas, com sérios problemas emocionais e sócio econômicos. Na escola, esses alunos vão repetir as ações praticadas em seus lares e/ou na vizinhança. O envolvimento com a criminalidade também é frequente entre esses jovens, que estão tanto nas periferias quanto nos bairros onde o poder aquisitivo é maior.
Reconheço, a dificuldade de se ensinar no Brasil, mas acho que nós, responsáveis pela educação e pela formação de pessoas para o futuro deveríamos nos dedicar mais a essa função. Porém, a maioria dos professores não têm a determinação e, nem sequer, a vontade que teve Erin Gruwell. Justificam esse descaso culpando o baixo salário e as condições precárias de trabalho. Mas, será que se tivessem, ao menos, vontade de ser educadores, estariam se importando com isso? Para terminar, parafraseio um apresentador de um programa policial: "cuide de seus alunos, ou os traficantes cuidarão deles".

segunda-feira, 9 de junho de 2014

Crime e Castigo- Dostoiévsky

   
APRESENTAÇÃO DO AUTOR E DA OBRA
Por: Marcelo Maia Gomes

      Fiódor Mikhailovich Dostoiévsky (* Moscou- 11 de novembro de 1821 + São Petersburgo- 9 de fevereiro de 1881 ), um dos maiores romancistas russos é, também, considerados por muitos, o fundador do existencialismo.Sua obra retrata a humilhação e a autodestruição humana, analisando estados patológicos que levam o ser humano á loucura, ao suicídio e ao homicídio. As ideias de Dostoievsky influenciaram filósofos (especialmente os existencialistas ), teólogos e vários campos da psicologia. Crime e Castigo, publicado originalmente em 1866, apresenta ao leitor um homem frustrado em busca da grandiosidade humana, muito pregada na Rússia, na segunda metade do século XIX.
      Ródion Ramanovich Raskólnikov é um estudante de Direito, que vive em São Petersburgo, ás custas da mãe e da irmã, que do interior lhe enviam dinheiro para os estudos e demais despesas. Para complementar a renda, Raskólnikov faz algumas traduções, ganhando muito pouco. A ajuda financeira que recebe da família e o dinheiro que ganha com seu trabalho não são suficiente. Ele vive precariamente, morando de aluguel em um pequeno apartamento e muitas vezes não tem sequer o que comer.
     A situação financeira do Raskólnikov o faz se sentir um ser sub-humano, ao contrário do homem extraordinário que tanto almeja ser. Acreditando que resolveria seus problemas, ele comete um latrocínio, matando também, a irmã da vítima, que testemunhou o crime.
      No entanto, o crime cometido por Raskólnikov em vez de transformá-lo em um homem extraordinário o faz sentir pior que antes. Agora, além dos problemas financeiros e de sua baixa autoestima, ele precisa enfrentar sua própria consciência, que ao mesmo tempo deseja e teme a punição pelo seu erro.  Ler “Crime e Castigo” faz o leitor pensar se vale tudo em busca de um sentido para vida. 

ANÁLISE LITERÁRIA( COM SPOILERS).
Por: Marcelo Maia Gomes

          Independentemente do motivo, qualquer pessoa que tira a vida de outra é um assassino; até mesmo aqueles que matam para proteger sua nação, sua própria vida ou a de um ente querido. Alguns assassinos são chamados de criminosos e outros de heróis. Em "Crime e Castigo",  Raskólnikov, o protagonista da obra de Dostoievsky é um homem frustrado que pratica um crime banal acreditando que isso o tornaria um ser grandioso e eternizado como foram Napoleão, Júlio César, Alexandre, o Grande, entre outros que entraram para a história por suas conquistas e pelos crimes cometidos para alcançar seus objetivos.
      Raskólnikov é um homem, cuja arrogância interna não concorda com sua situação externa. Insatisfeito com a vida que leva, ele quer fazer algo que o torne um homem extraordinário.
     Aliona Ivânovna é uma senhora já idosa, uma agiota que cobra juros altíssimos. Como numa loja de penhores, ela fica com algum objeto de valor de seus “clientes”, como garantia para receber o que lhe devem.  Raskólnikov é um dos que recorrem á Aliona para conseguir dinheiro, empenhando as poucas coisas que possui como um anel e um relógio de prata, que herdara de seu pai.
     A agiota pagava muito menos do que valia aquilo que estava sendo penhorado. Dessa forma, estava sempre lucrando; quer seja com os juros pagos pelo devedor ou pela venda do que foi deixado como garantia. Além disso, ela explorava Lisavieta, sua irmã mais nova, obrigando-a a fazer os serviços domésticos, e tomando lhe todo o dinheiro, conseguido ás custas de faxinas que fazia em outras casas. Não eram raras, as vezes em que Lisavieta era espancada por sua irmã mais velha.
     Aliona representa o sistema capitalista, criticado por Dostoiévsky. Aproveita-se da fraqueza das pessoas para se fortalecer. Ela, apesar da idade, ainda controla e explora os necessitados ( situação que representa o capitalismo, que na segunda metade do século XIX , já era considerado por muitos russos como obsoleto, mas que ainda dominava o país ).
      Raskólnikov acredita que latrocinar Aliona, além de resolver sua situação financeira, estaria cometendo um ato nobre, o que o faria se sentir tão extraordinário como os grandes homens da história. Livraria o mundo de uma pessoa má, que abusa de suas condições para explorar os necessitados.
    No entanto ao cumprir o que acreditava ser sua honrosa missão no mundo, matando e roubando Aliona, Raskólnikov mata também Lisavieta que é tão explorada pela agiota quanto ele. Embora "Crime e Castigo" tenha sido publicado 51 anos antes da Revolução Russa, podemos comparar a morte de Lisavieta com a morte de vários inocentes durante os conflitos que derrubaram a monarquia czarista na Rússia.
   Se antes do crime, Raskólnikov se sentia um ser, cuja existência não representava, passa a se sentir atormentado tanto pela culpa e pelo medo como por não ter alcançado seus objetivos: resolver sua situação financeira e se tornar um herói. Ao contrário, passa a se sentir tão inescrupuloso como era sua vítima. Além disso, ele nem mesmo usufrui do que roubou, já que esconde tudo debaixo de uma pedra.
   Se Aliona representa o capitalismo, seu assassino representa a vítima do sistema. Não aquela vítima que quer se libertar da exploração, mas a que quer se tornar tão ou mais poderosa que seu opressor. No entanto, o crime o tornará mais fraco. Sua essência deixa de ser a frustração por não ser extraordinário e passa a ser o tormento por não alcançar sua meta e o medo de ser descoberto por ter cometido um crime que não resolveu nenhum de seus problemas.
   O niilismo leva o homem á duas consequências: a de viver atormentado por um pessimismo crônico ou á busca de um significado para a existência. Raskólnikov se sentia um “nada”, um ser inútil para a humanidade. Ambicionava o sucesso e um sentido para sua vida. Matar  e roubar não lhe proporcionaram nenhuma dessas coisas.
    Dostoiévsky cria seu personagem baseando se no dualismo cristão, mostrando o homem constituído pelas camadas do Bem e do Mal. Além de ser atormentado psicologicamente  pelo medo das leis mundanas, Raskólnikov é condenado espiritualmente por suas convicções religiosas.
      A intenção de Dostoievsky não foi criar um romance policial, onde o crime é o tema central da trama. O escritor russo procura abordar as complicações que um ato causa a alma humana. O pior castigo de um crime nem sempre é a privação da liberdade física, mas o tormento de suas consequências, que priva a consciência de um raciocínio livre.
     Em um diálogo com a prostituta Sônia, Raskólnikov atormentado pela culpa e pelo frustração por não atingir sua meta, diz que na verdade não matou a velha, mas a si mesmo. Ela, então, aconselha o assassino a confessar o crime á polícia e se arrepender perante Deus. Só assim, ele voltará a viver.
         Sônia, uma mulher que se prostitui para ajudar a família, torna-se  um abrigo para a consciência atormentada de Raskólkinov e passa a representar um sentido para a vida dele, pois o ama e cria nele a esperança de que o mundo pode ser melhor. Ao mesmo, ser amado por outras pessoas atormenta ainda mais a consciência do personagem, pois as consequências de seus erros afetam também aqueles que o querem bem.
    Tentando aliviar sua angústia, Raskólnikov segue o conselho de Sônia e se entrega à polícia. Condenado a oito anos de trabalhos forçados na Sibéria, ele questiona por que é considerado criminoso por dois homicídios enquanto aqueles que mataram milhões são chamados de heróis. Percebemos, então, que a privação de sua liberdade o faz pensar muito mais na frustração de não ter conseguido se tornar um homem extraordinário do que se arrepender por ter assassinado duas mulheres. 
    Perguntava-se também por que insistia em viver, ao invés de se matar. Não entendia como os demais presos pareciam amar a vida, mesmo nas condições em que viviam. Talvez, por isso sentia que sofria mais que os outros; não suportava sua existência, mas não tinha coragem e nem vontade de dar um fim a ela. Talvez, por ter como a luz no fim do túnel a existência Sônia, que o visita frequentemente e mais tarde passa a viver com seu amado no presídio. É o amor de Sônia que renova Raskólnikov e o transforma em um homem que sente vontade de viver e que finalmente se arrepende e se redime de seus erros. 
    A intenção de Dostoievsky em "Crime e Castigo" é  mostrar ao leitor que o erro não soluciona os problemas; ao contrário, traz tormentos causados pelo medo e pela culpa. Nos capítulos finais, a obra do romancista russo apresenta como remédios para o pecado a confissão, o arrependimento e o amor.

domingo, 8 de junho de 2014

O Sétimo Selo

SINOPSE
Por Marcelo Maia Gomes

Lançado em 1956, o filme “O Sétimo Selo” é considerado uma das duas maiores obras do sueco Ingmar Bergman, junto com Morangos Silvestres( 1957). Nos dois filmes, o cineasta trata da questão do sentido da vida e do homem diante da morte.
O cenário do filme é a Europa do século XIV, devastada pela peste negra e administrada pela Igreja e legislada pela inquisição da mesma.
O filme é considerado um clássico do cinema mundial e até hoje serve como estudo e reflexão, tanto para filosofia quanto para a psicologia e teologia

COMENTÁRIO
Por Marcelo Maia Gomes

O medo da morte é algo que todos os seres humanos tem em comum e nos forçamos a aceitá-la, porque sabemos que é impossível evitá-la. Há tempos, o ser humano vem tentado prolongar sua existência cada vez mais através da ciência e/ou se confortando, através da crença, pregada pela maioria das religiões, de que viverá eternamente em um mundo além.
Pensar que um dia deixará de existir, causa ao ser humano frustração e pavor, criando nele a necessidade de buscar uma “realidade” além da que se vê. O homem tende a acreditar que há um sentido na vida e para isso é necessário que ela continue após a morte. Pois, se tudo termina com a morte, que sentido há em viver?
Em “O Sétimo Selo”, um cavaleiro medieval ao se deparar com a morte, propõe a esta um jogo de xadrez, com a intenção de ganhar tempo para encontrar um sentido para vida.
Quando se apresenta, A Morte diz a Block que anda ao seu lado há muito tempo. Afinal, a morte é algo iminente desde que uma vida se forma. No entanto, enquanto corpo se prepara naturalmente para a morte desde sua concepção, nossa consciência não a aceita tão fácil. É, exatamente isso, que o cavaleiro quer dizer quando responde que seu corpo está preparado para o fim, mas ele não.
Esse conflito entre a vontade da consciência e a incapacidade do corpo de satisfazer tal vontade cria no homem um sentimento niilista, que o faz negar esta vida em prol de uma existência eterna no além.
A consciência humana não aceita ser apenas uma parte do físico perecível. Ela quer transcender a isso, quer superar sua própria natureza. Enquanto alguns se apegam á crença na  vida pós morte, outros buscam uma maneira de prolongar sua existência ou até mesmo alcançar eternidade aqui mesmo, através da ciência. Todos querem solucionar o problema que é única certeza da vida e nossa maior frustração; o fim.
Block tenta vencer a morte em um jogo de xadrez, mas no fundo sabe que isso é impossível. Sendo assim aproveita o pouco tempo que lhe resta para tentar descobrir se há algum objetivo para a vida, além de seu fim.
A religião e os aspectos da religiosidade são temas bastante questionados no filme de Bergman. Block, várias vezes questiona a existência de Deus e qual o objetivo da fé. Quando, ele encontra com uma mulher que está prestes a ser queimada na fogueira, por supostamente ter se envolvido com o Diabo, o cavaleiro se aproxima dela para saber se ela tem conhecimento de Deus. Afinal, se ela teve contato com o Diabo, soubesse também sobre o Criador.
Porém, ao questioná-la, não encontra as respostas que procura e a “possuída”, é mais um bode expiatório para justificar a incompetência da ciência, da política e da igreja que não conseguem descobrir a causa da peste e muito menos uma solução para o problema. Enquanto Block não aceita a falta de respostas para seus questionamentos e continua a procura de Deus e/ou do Diabo, o escudeiro Jon acredita que só há o vazio, tanto para nos proteger quanto nos atormentar.
Paralelamente aos questionamentos de Block e sua busca por um sentido na vida, uma companhia de teatro mambembe parece indiferente ao cenário caótico e sombrio da época. Contrapondo se ao sofrimento, amargura e angústia dos demais personagens, os atores da trupe são alegres, amam e têm a arte como escudo diante da nonsense da vida e da certeza da morte. Seria a arte, o único meio de superar a vontade, que é a fonte de todo sofrimento humano como acreditava Schopenhauer? No caso do filme, a vontade de encontrar sentido na vida e encarar (ou seria ignorar?) a morte. É como disse Nietzsche “temos a arte para não morrer ante a verdade”.
Já Camus não acredita que a arte oferece uma saída para o mal do espírito, mas é um dos sinais deste mal, e ela (a arte) nasce da renúncia de raciocinar o concreto. Ou seja, tanto para Schopenhauer como para Nietzsche e Camus, a arte nada mais é que um artifício usado pelo ser humano para dá sabor à uma natureza insípida.
E enquanto Block percebe a insipidez e parte em busca de encontrar um sabor concreto para a existência, e seu escudeiro Jon aceita que vida não tem finalidade alguma, os integrantes da companhia de teatro vivem felizes e amando, alheios tanto à peste quanto aos questionamentos racionais sobre a vida.
Então, se a arte não é uma saída para o mal, como diz Camus, é no mínimo, um meio de se proteger dele, assim como o guarda-chuva que não impede a tempestade, mas evita que nos molhemos totalmente.
Se a arte pode ser comparada a um guarda-chuva em um dia de tempestade, a ingenuidade se assemelha a uma casa bem construída, onde nenhuma gota de chuva cai. É essa ingenuidade que permite que a família mambembe seja feliz, tendo a desgraça ao seu redor. Jof, um dos integrantes da trupe, é o único personagem que enxerga o sagrado, através de suas epifanias e também percebe que a morte é a adversária de Antonius Block no jogo de xadrez. No fim, apenas ele, sua esposa e o filho escapam da morte e seguem a vida, sem se importarem se a existência tem ou não sentido. É como diz a canção; “estamos vivos e é só”. E é isso que importa para Jof e sua família; estarem vivos, “sem motivos, nem objetivos”.
Block, ao perceber que perdeu o jogo e que será levado pela morte implora pela presença e ajuda de Deus. Jon, em seu ceticismo, diz ao cavaleiro que não há ninguém para ouvir suas lamentações e súplicas, e apenas a indiferença e a escuridão os espera.
O cavaleiro e seus amigos percebem que quando “ela” chega, não há como escapar e o jeito é segui-la Mas, para onde? Para o Paraíso cheio de recompensas, para o Inferno e seu eterno castigo, para o vazio da inexistência ou continuamos sem respostas?
Bergman, não tem a intenção de difamar a fé e a religião, mas sim questionar o papel de ambas em meio as desgraças da humanidade. Afinal, a função da fé e da religião é paliativa, acusadora e punitiva ou, realmente, solucionadora?
O cineasta também parece não ter a intenção de mostrar a vida, através do pessimismo, mas mostra-la sob vários pontos de vista. Block é  homem que acredita que a vida possa ter sentido, e sai nessa busca. O escudeiro Jon,  aceita a nonsense da existência e em alguns momentos sente medo do vazio. E o ator Jof e sua família, têm a arte, o amor e a inocência como um remédio para os males da existência. E isso basta para eles.

BIBLIOGRAFIA
CAMUS, A. O Mito de Sísifo. Tradução de Ari Roitman e Paulina Watch. Rio de Janeiro. Editora Record, 2008.
MANN, H. O Pensamento Vivo de Nietzsche. Tradução de Sérgio Milliet. São Paulo. Editora Martins, 1975

E- REFERÊNCIAS
FILOSOFIA COM ARTE NO ENSINO MÉDIO ( Disponível em http://filosofiacomarte.blogspot.com.br/2008/10/temas-recorrentes-no-filme-o-stimo-selo.html Acesso em 17 de Setembro de 2013 ás 22:31)

sábado, 9 de fevereiro de 2013

The Wall

                            


●Título Original: The Wall
●Direção: Alan Parker
●Origem: Reino Unido
●Ano de Lançamento: 1982
●Duração: 95 minutos


THE  WALL
Uma fuga ou um meio de enfrentar a náusea e a nonsense da existência?

SINOPSE
               por Marcelo Maia

     O filme The Wall, é um musical, baseado no álbum homônimo da banda Pink Floyd. O roteiro, criado pelo baixista e vocalista Roger Water, conta a vida de um roqueiro que se tranca em uma prisão psicológica criada por suas desilusões e perdas no decorrer de sua vida. Pink, o protagonista do filme, cria uma barreira entre ele e a sociedade, se tornando um ser triste e solitário, mesmo casado, famoso, rico e tendo sempre ao seu lado uma equipe profissional e sendo adorado pelos seus fãs.
O “muro” de Pink é construído por momentos marcantes de sua vida, como a morte do pai, a convivência com uma mãe super protetora, a vida escolar, o casamento e a fama. Um ótimo filme para quem gosta de música e filosofia
          
COMENTÁRIO
                         por Marcelo Maia
            

          Quando um homem entra em conflito com a existência e percebe a nonsense da vida, o que lhe resta? Negar essa existência e esperar uma vida melhor no além, acreditar que um dia encontrará um sentido para a vida, aceitar o absurdo de uma vida que o levará ao nada ou antecipar o fim dessa existência, se matando? Seria o suicídio, uma solução para o Absurdo? De acordo com Camus, em “O Mito de Sísifo”, solução para o Absurdo não é o suicídio, e sim a revolta. Mas como agir ao se revoltar com a existência, sem se matar? Na ópera-rock “The Wall”, o protagonista Pink, um astro da música se revolta com a existência e tenta fugir dela se isolando do mundo exterior . Mas esse isolamento não o leva apenas a se trancar em casa e a se afastar totalmente da sociedade. Pink se tranca em um mundo que ele cria em sua mente, tentando se afastar de si mesmo. Para se proteger em seu mundo, ele começa a construir um “muro” que o separa mentalmente do convívio social e de sua condição atual. No entanto, os tijolos que formam “o muro (The Wall)” de Pink, são as mesmas peças que construíram aquele homem angustiado e lhe revelaram uma existência cheia de horrores. Essas peças ou tijolos são na verdade, os acontecimentos de sua vida. A morte do pai na Segunda Guerra Mundial, a proteção em excesso por parte da mãe, um casamento entediante que leva sua esposa a o trair e, principalmente, sua insatisfação com a condição da existência humana.
            Em “A Náusea”, de Jean Paul Sartre, o personagem Antoine Roquentin passa a sentir uma aversão à existência humana e, esse niilismo o leva a beira da loucura. Ele constata que a vida em si não possui uma essência, e que esta só é obtida através de artifícios e ilusões. Em The Wall, Pink chega à mesma conclusão de Antoine, mas percebe que todos os artifícios usados para dar sentido e preencher o vazio da vida, a tornam mais ainda sem sentido e são tijolos que vão aumentar o seu muro.
      
            De acordo com Albert Camus, o sentimento de absurdo na existência humana é fundamentado na incompatibilidade entre os desejos do homem e sua quase nula capacidade de realiza-los.  Queremos um mundo justo, mas não é isso que temos, afinal o conceito de justiça de uma pessoa ou grupo não é o mesmo do outro. Além da justiça, estamos sempre á procura de algo, sempre querendo mais e mais. E muitas vezes, nem sabemos o quê.  Tudo o que queremos é preencher o vazio da existência. É isso que Pink quer saber quando, em um dos momentos do filme, pergunta: “O que devemos usar para preencher esses espaços vazios?”.  Mas, como eu disse no parágrafo acima, Pink chega á conclusão que qualquer artifício usado para preencher o vazio, aumenta mais ainda o seu muro e sua aversão á existência.
            Sentimos bem quando obtemos algo que desejamos (um emprego, um bem material, uma vaga na Faculdade, começamos um namoro, o nascimento de um filho, etc) e nos sentimos mal quando perdemos algo que amamos ou precisamos (um ente querido que morre, um bem material que estraga ou é roubado, um relacionamento que termina, a demissão de um emprego, etc). Sentimo-nos mal também, quando adquirimos o que não queremos ou temos dificuldade em nos livrar de algo que nos incomoda (uma doença, um vício, um vizinho barulhento, um emprego desagradável, um relacionamento desgastado), afinal nem sempre é fácil rejeitar ou dar um basta numa situação.
Ao sentimento de "bem-estar", damos o nome de felicidade e chamamos de infelicidade, o sentimento de "mal-estar". Porém, tanto a felicidade quanto a infelicidade são sentimentos momentâneos. Dizer que alguém é feliz é tão fantasioso quanto acreditar que alguém é infeliz. Tanto a felicidade quanto a infelicidade depende de uma realização (o bem para uma e o mal para outra). Afinal, não são apenas sonhos que se realizam; pesadelos também. Como esses sentimentos de realização não ocorrem a todo o momento, o ser humano se depara com outro sentimento, que é o vazio. O vazio é, absurdamente, o sentimento sem sentido (nonsense) e é dele que Pink tenta fugir.
O protagonista de The Wall prefere viver num mundo sombrio e atormentado pelos fantasmas de seu passado após constatar que nada preenche o vazio da existência. Para ele, a realidade atual com riquezas, fama e luxúria, é muito pior que o seu passado de dor, onde convivia com as dificuldades de um país tentando se reerguer após a guerra, a falta de uma figura paterna em sua criação, as dificuldades financeiras e a educação numa escola, onde professores tiranos aliviavam suas dores emocionais castigando e zombando dos alunos. Mas, se no passado ele convivia com o horror, pelo menos tinha o sonho de que um dia seria feliz e acreditava que para isso bastava ter uma vida diferente quando se tornasse adulto. Porém ao alcançar o sucesso, se tornar rico e conquistar a mulher amada, Pink percebe que a realização de seus sonhos não preenchem seu vazio existencial e passa a procurar outros artifícios, como drogas, para tentar ao menos disfarçar sua dor perante a realidade. Ao contrário de quando era criança, ele não tem mais sonhos e nem esperança de que encontrará um sentido para a vida. “The child has grown, the dream has gone, and I have become comfortably numb (A criança cresceu, o sonho acabou e eu me tornei confortavelmente entorpecido- trecho de Comfortably Numb, uma das canções da Ópera Rock e do Álbum The Wall)”.
Por que estamos buscando constantemente algo que nos dê sentido e que nos satisfaça, mas sempre voltamos ao vazio? Essa resposta foi respondida, indiretamente, por Aristóteles em sua Metafísica. Como todos os seres (com exceção da Causa Primeira), o ser humano também é um ato (forma ou condição atual, o que é) em potência (transformação,vir a ser), sendo assim ele sempre vai sentir necessidade de alterar sua condição atual. De acordo com Nietzsche, “a vida aspira a um sentimento máximo de potência”. Porém, a impossibilidade de alcançar o nível desejado de potência, gera angústias e aflições na pessoa e ela passa a negar a realidade e afirma outro mundo que acredita que a satisfará.
Pink, ao constatar sua impossibilidade de alcançar seu nível de potência, nega sua condição atual e se afirma no seu mundo passado que o atormenta, mas também lhe permite almejar mais potência. Porém nem sempre lhe é permitido viver no seu microcosmo sombrio e confortável. Quando é extremamente necessário, ele atravessa seu muro e se depara com o macrocosmo, do qual ele sente náuseas. Para enfrentar a realidade ele se despe daquele disfarce de homem frágil e derrotado pela existência e se protege usando o uniforme do preconceito e da intolerância, acreditando que dessa forma conseguirá escapar da nonsense da vida e finalmente realizar sua potência máxima. Mas acaba constatando que esse sentimento de superioridade o torna um ser mais inferior ainda. Em seus delírios, ele se torna um nazista e comete várias atrocidades, mas ao retornar a realidade se encontra em uma condição pior que a anterior. Muito mais angustiado e vencido, ele aparece em um banheiro apoiado no vaso sanitário. Ou seja, agora, usando uma linguagem chula, ele se sente como a própria merda. Porém agora ele não quer mais fugir da realidade e chega á conclusão de que precisa sair de seu mundo tenebroso e para isso é necessário um auto julgamento.
Ao fazer uma reflexão sobre sua vida, Pink constata que ele é o principal responsável pela situação em que vive e se a vida e as pessoas lhe causaram sofrimento, ele foi, também, responsável pelo sofrimento de outros. O auto julgamento o leva a concluir que ele é o culpado, e como tal precisa ser punido. Sua sentença é destruir o muro que o separa de seus semelhantes e encarar o Absurdo da realidade.
Essa punição ,na verdade, é a revolta, a solução contra o Absurdo, proposta por Camus em “O Mito de Sísifo”. É o homem diante de si mesmo e de sua própria escuridão, é o contrário da renúncia e do suicídio. É viver o máximo que a natureza nos permitir, estando ciente de nossas limitações. Só assim, é possível suportar e compreender esse conjunto de sentimentos sem sentido chamado VIDA.


FONTES CONSULTADAS


 CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo. Tradução de Ari Roitman e Paulina Watch. Rio de Janeiro. Record, 2008
SARTRE, Jean Paul. A Náusea. Tradução de Rita Braga. São Paulo. Ediouro, 2006.
FERREIRA, Amauri. Introdução á Filosofia de Nietzsche. (Disponível em: http://www.amauriferreira.blogspot.com/. Acesso em O7 de Fevereiro de 2013 ás 22h00min)









segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Kaspar Hauser e o Homem Natural



           O Enigma de Kaspar Hauser

Ficha Técnica

Ü Título Original: Jeder für sich und Gott gegen alle
Ü Direção: Werner Herzog.
Ü Origem: Alemanha
Ü Duração: 110 minutos.




SINOPSE:
                                                      (por: Marcelo Maia)


              O Enigma de Kaspar Hauser foi produzido em 1974 na, então, Alemanha Ocidental. O filme, baseado em fatos reais, conta a história de um jovem que viveu em cativeiro desde a infância, sem ter qualquer contato com outras pessoas ou mesmo animais.
            Após ser liberto e abandonado em uma praça de Nuremberg, em 1828, Kaspar Hauser passa a ter contato com outros seres humanos e com o mundo exterior. Aos poucos, o ex-cativo vai se adaptando ao modo de vida daquela cidade, se tornando um ser social, ao mesmo tempo em que critica e questiona alguns costumes do lugar.
            A história de Kaspar Hauser nos leva a questionar se realmente há uma racionalidade comum a todos os seres humanos ou se nossas semelhanças se consistem apenas em nossas necessidades físicas.



ANÁLISE LITERÁRIA (COM SPOILERS)
(por Marcelo Maia)

        Há uma fábula indiana que conta sobre uma tigresa prenhe que, devido ao esforço realizado quando atacava um rebanho de cabras, acaba por provocar o nascimento prematuro de seu filhote e em seguida veio a falecer. As cabras, que haviam se espalhado durante o ataque, ao retornarem encontram ali o tigrinho recém-nascido e desamparado. Vendo tal cena, elas se compadecem e seguindo seus instintos maternais adotam o felino e o criam como se ele fosse uma delas; ensinando o a berrar e se alimentar de grama. Enfim, o tigre cresce acreditando ser um cabrito. E vive assim até o dia em que o rebanho é atacado por outro tigre que, ao ver seu semelhante ali no meio de suas presas, o leva á força para o seu covil. Lá, o tigre que fora criado pelas cabras vai descobrindo sua real natureza. Aprende a rugir, a comer carne e a caçar outros animais.
Essa fábula é contada pelos hindus para ilustrar a descoberta do verdadeiro “eu” pelo ser humano. No hinduísmo, o termo “ verdadeiro eu”  se refere á uma consciência transcendental. Num processo de socialização, tal termo pode muito bem ser usado para expressar a  transformação de um indivíduo em um ser social. É quando ele passa a se identificar com o meio em que vive, descobrindo assim sua identidade humana.
No filme “O Enigma de Kaspar Hauser”, ao invés de um tigre, um homem começa a descobrir suas capacidades, através do contato com outros seres humanos. Enquanto o tigre da fábula acreditava ser um cabrito por ter convivido, desde seu nascimento, com cabras, Kaspar Hauser desconhece qualquer tipo de convivência com outros seres vivos, tendo como companhia apenas a miniatura de um cavalo.
Esse homem não sabia andar e não pronunciava mais que uma frase, que lhe fora ensinada pouco antes de ser liberto do cativeiro. A ausência de um contato com outros seres humanos impediu que Kaspar desenvolvesse tais habilidades.
De acordo com Rousseau(1978) “o homem no estado de natureza quer somente aquilo que o rodeia, porque ele é desprovido da imaginação necessária para desenvolver um desejo que ele não percebe. Suas vontades não passam de suas necessidades físicas, pois os únicos bens que ele conhece no universo são a alimentação, uma fêmea e o repouso".
Nos primórdios, o homem primitivo no seu estado de natureza, teve como educadoras suas necessidades e suas sensações. A necessidade de se alimentar fez com que o homem primitivo descobrisse e desenvolvesse sua capacidade de se locomover. Para se proteger dos fenômenos da natureza e de outros animais ele precisou procurar um abrigo e diante da ameaça de um ataque teve que aprender a emitir sons para conseguir ajuda. A partir de então, os aprendizados de uma geração foram passando para a geração seguinte, e a necessidade deixa de ser a única fonte de educação humana. Como auxiliares no processo de educação aparecem a tradição, o exemplo, e posteriormente as crenças religiosas e os interesses sociais de cada grupo e também pretensões individuais de seus líderes.
Kaspar Hauser, ao contrário do homem primitivo, não sentiu necessidade de se locomover ou de emitir sons para que seus desejos naturais fossem atendidos, pois já possuía abrigo e alimentação.  A necessidade de socialização também não havia no jovem cativo, pois ele, assim como os homens da “caverna de Platão” , acreditava que tudo o que existia era aquele calabouço e as poucas coisas que tinham ali. O único interesse que possuía era o de se alimentar, defecar, urinar e dormir. Ou seja, durante muito tempo, viveu em pleno estado de natureza.
Nos seus primeiros momentos no campo e na cidade, Kaspar tem os olhos ofuscados pela realidade, pois, assim como o homem que se liberta dos grilhões na Caverna de Platão e descobre o mundo lá fora, ele sente medo e admiração diante da nova realidade. É desta forma que qualquer ser humano se sente ao se defrontar com um macrocosmo com dimensões incrivelmente maiores que seu microcosmo.
Para que o choque entre o micro e o macrocosmo não seja tão violento é necessário que haja um processo de socialização do indivíduo desde seus primeiros anos de vida. Os primeiros contatos de um indivíduo com a vida social se inicia no ambiente familiar. É ali que ele começa a ser preparado para se tornar um “animal social e político”, como Aristóteles bem definiu o homem.
Ainda citando Aristóteles, ele diz que o homem que vive só ou é um deus ou uma besta. O personagem principal do filme talvez não se compare nem a uma besta, pois até os animais precisam de contato com outros seres, semelhantes ou não, para que obtenham uma identidade comum a outros.  Essa falta de contato com outros seres e a não preparação para a vida social causa um choque violento entre a minúscula noção de realidade de Kaspar e a vida social em Nuremberg.
  Aos poucos, Kaspar vai descobrindo suas capacidades humanas individuais e sociais. Descobertas que se iniciam através de observações dos atos das outras pessoas e das imitações destes atos. Assim, é o princípio da socialização de todo ser humano. Para Piaget, o homem nasce com as condições necessárias para ser completo, mas precisa de um processo de socialização.
Outro fator essencial para a socialização é a educação. O conceito de educar, muitas vezes se confunde com o conceito de socializar. Mas, assim como a convivência, a observação e a imitação, o processo de educar é  apenas uma das etapa da socialização. Educar é o ato de ensinar e aprender, quer seja na forma oral, escrita ou prática.
Os primeiros contatos de Kaspar Hauser com a educação se inicia na casa da primeira família que o acolhe. Lá, ele aprende como se alimentar usando talheres, a noção de vazio e cheio, a se banhar e conhecer as palavras que dão nome ás partes de seu corpo.
A educação tem também como função, desde o período clássico da filosofia grega, despertar no homem seu lado crítico e questionador. Era esse o método que Sócrates usava para despertar o conhecimento em seus discípulos e nos demais que com ele dialogavam ou debatiam. Através de perguntas, o filósofo fazia seus interlocutores se contradizerem e, em seguida, descobriam dentro de si uma verdade diferente daquela que possuíam anteriormente. Para Sócrates a vida só vale a pena se for questionada.
Kaspar Hauser,  enquanto vai sendo educado e se integrando á sociedade, passa a perceber que a convivência no meio social, tem seus prós e contras. Por um lado, ele entra em contato com o afeto, o conforto, a amizade e a arte. Mas se depara também com os males da sociedade como ganância, preconceitos, jogos de interesse, entre outros. Ele, então, passa a questionar e a criticar os costumes da cidade, como a religião e o papel da mulher no meio social. Em um trecho do filme, chega a dizer que vivia melhor quando estava enclausurado, pois  não convivia com a maldade. Esse trecho do filme nos remete novamente a Rousseau, que em sua teoria sobre a natureza humana diz que todo homem nasce bom e é corrompido pela sociedade. Ao contrário de Hobbes, que afirmava que os homens são maus por natureza.
Durante o filme, vão sendo colocadas muitas outras questões sobre o estado de natureza do ser humano. Há duas que, com certeza  vão intrigar os espectadores mais atentos:
A primeira questão se refere á relação do ser humano com a arte, em especial a música. Kaspar, ao ouvir música pela primeira vez, se emociona e posteriormente se interessa em aprender a tocar piano. Seria então, o gosto pela arte, algo tão natural do homem que se desperta no primeiro contato entre eles?
  A segunda questão é polêmica, pois se refere a relação entre o ser humano e a crença no sobrenatural. Kaspar não tem nenhuma noção de Deus ou de qualquer outro ser sobrenatural. Esse trecho do filme estaria pondo em xeque a afirmação de que a crença e a  adoração a um ser superior e sobrenatural é natural do ser humano, e não um meio de suprir as necessidades primárias e/ou secundárias de nossa existência?
Em suma, “ O Enigma de Kaspar Hauser” é um filme que deve ser assistido com atenção, para que o espectador possa assim refletir e questionar sobre o homem em seu estado de natureza e o processo de socialização de um indivíduo.



BIBLIOGRAFIA


ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. * São Paulo: Abril Cultural, 1978.
HOBBES, T. Leviatã. São Paulo: Martins Fontes, 2008
ZIMMER,H. Filosofias da Índia. Tradução por Nilton Almeida Silva e Cláudia Giovani Bozza. São Paulo: Palas Athena, 2008.


E-REFERÊNCIAS